Em época de Páscoa, e de uma forma geral por toda a região Centro, celebra-se a fertilidade, a renovação, e a vida com recurso a símbolos bem conhecidos da gastronomia regional. Após o período de privação quaresmal, eis que chega a Primavera e o apetite pelos sabores tradicionais. Apresentamos, de seguida, alguns destes sabores que preenchem as mesas da região. Garantimos que esta é a melhor Páscoa: tem cabrito, tem chanfana, tem borrego, tem leitão, tem folares, tem amêndoas, tem pão-de-ló, tem doces conventuais, e muito mais. Delicie-se!
O "sacrifício do cabrito" que a religião cristã transmitiu, chegou aos dias de hoje e serve-se habitualmente no Domingo de Páscoa. Assado no forno, com laranja, grelos e batatinhas, esta é uma especialidade apreciada por toda a região, sendo os concelhos de Oleiros (Castelo Branco) e da Lousã (Coimbra) os grandes defensores desta iguaria (ambos organizam festivais gastronómicos do cabrito, em março e abril: Festival do Cabrito Estonado e Festival Gastronómico do Cabrito da Serra da Lousã).
A quem se interroga sobre a possibilidade de os incêndios de junho e outubro de 2017 terem ameaçado esta espécie ao ponto de a colocar em risco, a resposta é: Não. A população de caprinos não terá sido afetada em larga escala pelo que é seguro consumi-la nesta altura.
São muitas as versões existentes sobre a origem da chanfana – um dos pratos de carne mais típicos da cozinha portuguesa. Uma delas atribui a sua invenção ao Mosteiro de Semide, próximo de Miranda do Corvo.
Anualmente, entre o Verão e até ao Dia de S. Mateus, as freiras de Semide, proprietárias de coutadas e terrenos agrícolas, recebiam como moeda de pagamento de rendas (“foros”) tudo o que o povo tinha para dar: desde vinho e azeite, a galinhas e até caprinos. Na impossibilidade de manter tamanho rebanho, optaram por cozinhar a carne de cabra em vinho tinto e outros temperos, que permitiam a sua conservação por um longo período de tempo.
Além da chanfana, a carne de cabra era ainda rentabilizada noutros pratos, como a Sopa de Casamento (feita com couves cozidas, pão fatiado e molho da chanfana, habitualmente servida nas bodas do casamento), os Negalhos (confeccionado com o bucho e as tripas da cabra), e o Chispe (feito com a parte do pé da cabra).
Apesar do mistério em torno da sua origem, a chanfana rapidamente se popularizou em vários concelhos da região Centro, sobretudo em Miranda do Corvo, Lousã e Vila Nova de Poiares – concelhos que realizam semanas gastronómicas anuais para promover esta iguaria.
O borrego (um cordeiro com menos de um ano) da região das Beiras é um produto de Indicação Geográfica Protegida (IGP), de raça ovina Churra do campo, Churra Mondegueira e Merino da Beira Baixa e seus cruzamentos. É produzido nos distritos de Castelo Branco e Guarda, nomeadamente, nos concelhos de Pinhel, Almeida, Belmonte, Fundão, Penamacor, e em algumas freguesias dos concelhos de Trancoso, Guarda e Covilhã. Este borrego é pequeno, de carne muito tenra e saborosa devido ao seu maneio em pastoreio extensivo na zona da Beira Interior.
Só há cerca de vinte anos se começou a explorar este ovino como produtor de carne, já que as suas maiores aptidões eram tradicionalmente o fornecimento de lã e a produção de leite para os muitos fabricantes de queijo na áreade fabrico dos queijos da Beira Baixa. Nessa altura, a carne era um subproduto da exploração, utilizado ou para autoconsumo das famílias dos pastores ou para efetuar ofertas de reconhecido valor.
De qualquer modo, estas ovelhas desde sempre desempenharam um papel importante na vida da população local, sendo muitas vezes, e até à introdução de outras culturas e outras fontes de alimento, a única fonte de renda para a comunidade agrícola.
Este tipo de borrego também é conhecido como “Borrego da Canastra”, sendo que a canastra é o cesto onde o borrego era tradicionalmente colocado, ou também como “Borrego de leite”, uma vez que o leite é o seu único alimento.
As mesas de Páscoa não passam sem o prato mais famoso da região da Bairrada - o “Leitão à Bairrada” – época em que o preço pode atingir os 35€/kg.
O prato tem origens na civilização romana, e daí até aos dias de hoje, a sua popularidade como iguaria gastronómica expandiu-se, sendo que só nesta região são assados todos os dias cerca de 3 mil leitões. Esta é uma das 7 maravilhas da gastronomia portuguesa, na categoria “Carne”.
- “Mas porque é que um Leitão à Bairrada é diferente dos outros que se comem pelo país?”.
Na Bairrada, um bom leitão não basta sê-lo: é preciso ser de raça Bísara ou Malhado de Alcobaça, e de preferência nascido e criado na região da Bairrada. Deverá ter entre 1 mês e 1 mês e meio, pesar 7/8 kg e alimentar-se exclusivamente de leite materno, o que confere um sabor peculiar à carne. Antigamente, era comum alimentarem-se também de bolotas da mata do Bussaco.
A pele estaladiça resulta dos pequenos borrifos com vinho branco bairradino enquanto o leitão é assado, e da passagem do forno quente para o frio, quando se “constipa”.
A acompanhar, serve-se – idealmente - batata cozida com pele, ao contrário da popular batata frita. A laranja fatiada, apesar de interferir com o sabor do leitão, tem uma função adstringente. Ainda assim, o melhor acompanhamento para o leitão da Bairrada será sempre a sandes, o pão atua como elemento neutro, dando espaço para o leitão ser rei.
O "Folar" era, tradicionalmente, o pão doce e seco que os padrinhos davam aos afilhados e que os fiéis entregavam ao padre durante a visita pascal. Com o passar do tempo, esta tornou-se a designação generalista para os bolos que as diversas regiões colocam na mesa por esta altura. Na região da Beira, o Folar é confecionado com ovos, farinha de trigo, leite, açúcar e raspas de limão, "coroado" de ovos cozidos, em sinal de fertilidade. Há quem o tempere com erva-doce, azeite, canela ou, ainda, aguardente.
Na Beira Interior, existem os "Esquecidos" (Fundão), as Broinhas e as Empanadilhas (Covilhã), e o Bolo de Azeite (Guarda). Este último pode apresentar-se com três tamanhos diferentes e tem forma comprida, com uma dobra no cimo. Quando cortado às fatias, estas formam um coração imperfeito.
Oliveira do Hospital guarda no seu património doceiro a genuína receita de Tigelada beirã - o doce que não falta na Páscoa.
É tradicionalmente confecionada num pequeno caçoilo (tacho de barro) em forno de lenha bem quente, depois de concluída a fornada de pão ou de cabrito. A sua textura rica e encorpada, dada pela quantidade generosa de ovos, amido de milho, e açúcar, funde-se com o aroma quente da canela, ponderado pelo limão. No fundo da “tigela”, forma-se uma calda doce onde a colher tende a mergulhar sorrateiramente.
O Pão-de-Ló de Ovar e o Pão-de-Ló de Alfeizerão, originários dos concelhos de Ovar (Aveiro) e Alcobaça (Leiria), são produtos de referência na doçaria tradicional portuguesa.
O Pão-de-Ló de Ovar apresenta o formato de uma broa e a sua massa é leve e fofa. Na parte superior exibe uma finíssima côdea húmida, de cor levemente acastanhada (o “ló”) circundada por uma orla de massa cremosa em tom amarelo-ovo, com aroma característico. Tradicionalmente comercializado envolto em papel “almaço” é um dos principais cartões-de-visita da doçaria tradicional portuguesa.
Já o Pão-de-Ló de Alfeizerão tem a sua origem no Mosteiro de Stª. Maria de Coz, convento cisterciense feminino fundado no século XII por D. Fernando, abade de Alcobaça em Coz, a alguns quilómetros de Alcobaça. Quando das perseguições às ordens religiosas e consequente encerramento do convento no início do séc. XIX algumas freiras ter-se-ão refugiado em Alfeizerão e transmitido a receita a senhoras da terra.
Por último, é de Coimbra, nomeadamente da Pastelaria Moinho Velho, o melhor Pão-de-Ló do país, vencedor da medalha de ouro no V Concurso Acip-Associação do Comércio e da Indústria de Panificação – “O Melhor Folar e Pão de Ló de Portugal”.
As amêndoas são outro dos símbolos associados ao ritual de renovação pascal. É na Beira Alta/Alto Douro, em Vila Nova de Foz Côa (Guarda), que encontramos um dos melhores tipos de amêndoas, cuja qualidade é reconhecida por grandes confeitarias e pastelarias nacionais (como é o caso da Pastelaria Alcôa, em Alcobaça).
O concelho de Vila Nova de Foz Côa reivindica muito justamente o título de "Capital da Amendoeira". Este possui a maior densidade de amendoeiras em toda a sua área (106.000 árvores em 38.000 hectares). Em todas as 14 freguesias que constituem o município, é possível admirar a extraordinária beleza das amendoeiras em flor, mercê do microclima de cariz mediterrânico.
Porém, o peso desta cultura na economia local vem sendo cada vez menor, e corre mesmo o risco do seu abandono, devido à amêndoa californiana, industrial e de menor qualidade, que invade e desestabiliza o mercado europeu, originando prejuízos aos produtores desta região.
Existirá região neste país que não tenha uma receita de Cavacas?
As de Pnhel (Guarda), são confecionadas por Maria da Conceição Dias, de 70 anos, a única doceira de Pinhel que confeciona as tradicionais cavacas com base numa receita com centenas de anos que pertenceu às freiras Clarissas que residiram naquuele concelho.
As Cavacas de Pinhel são um produto com ingredientes simples (ovos, açúcar, farinha), de massa seca e leve, com a forma de uma "pinha". Quem prova, fica fã do doce.
Já as de Coimbra (foto em baixo) distinguem-se pela generosidade do seu tamanho, como que a pedir para serem recheadas com frutas ou gelado. É um doce oco, tosco e seco, mas a cobertura de glacê humedece-lhe a massa, e é aqui que reside a sua graça.
A sabedoria popular mostra-nos que a partir de ingredientes modestos é possível criar delícias que se prendem à nossa memória do paladar, provando que nem só nos conventos se produziam doces de qualidade.
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