Gemas de ovos, açúcar e amêndoas compõem a trilogia de ingredientes utilizados na confecção dos doces conventuais portugueses. A estes, juntavam-se por vezes canela, farinha (em pouca quantidade) e frutas cristalizadas, dando origem a receituários vastos e complexos. A capacidade divergente e "savoir-faire" das freiras (cuja vida conventual não se limitava a rezar e a cuidar dos desfavorecidos e enfermos) possibilitaram inúmeras combinações e formas de preparar quase sempre os mesmos ingredientes.
Em Coimbra, era com doces que as freiras retribuíam a estudantes, lentes, poetas e fadistas, os recitais poéticos noturnos que lhes dedicavam às portas dos conventos. Estes momentos peculiares de ligação entre a vida conventual e a Universidade, a doçaria e a poesia, ficariam conhecidos como “Tardes dos Outeiros” ou “Abadessadas”, sendo deles protagonistas, entre outros, Francisco da Silveira Malhão, Antero de Quental, João de Deus, António Castilho e, ainda, Almeida Garrett, que um dia revelou: “mui gulloso doce as madres nos davam”.
Nas casas religiosas, as claras de ovos eram utilizadas para engomar e a doçaria conventual pode evoluir graças ao aproveitamento das grandes quantidades excedentárias de gemas, dando origem a inúmeras receitas. Diz-se até que, em tempos, o nosso país terá sido o maior produtor de ovos do mundo e o maior exportador de claras.
Inicialmente, o mel era o principal adoçante utilizado na cozinha conventual, mas, a partir da exploração da cana-de-açúcar no Brasil, nos séculos XV e XVI, o açúcar passou a estar disponível em maior quantidade e a preço reduzido, e, para além de medicamento, passou a ser um ingrediente comum nas receitas de doces, contribuindo para a desenvolvimento da doçaria conventual.
Conheça estes 10 doces conventuais dos conventos da região de Coimbra e que o vão deixar de água na boca.
Também conhecido por “Maminha de Freira”, o lascivo doce Manjar Branco, criado no Convento de Celas, surpreende não só pela forma, mas também pelos ingredientes: peito de frango, farinha de arroz e flor de laranjeira. É servido em bases feitas em barro vermelho.
Existirá região neste país que não tenha uma receita de Cavacas? As de Coimbra distinguem-se pela generosidade do seu tamanho, como que a pedir para serem recheadas com frutas ou gelado. É um doce oco, tosco e seco, mas a cobertura de glacê humedece-lhe a massa, e é aqui que reside a sua graça.
A sabedoria popular mostra-nos que a partir de ingredientes modestos é possível criar delícias que se prendem à nossa memória do paladar, provando que nem só nos conventos se produziam doces de qualidade.
Poderemos dizer que os Pastéis de Santa Clara estão para Coimbra, tal como os Pastéis de Belém estão para Lisboa. Este é, provavelmente, o doce conventual mais requisitado na cidade e a criação mais célebre do Mosteiro de Santa Clara de Coimbra. Outrora vendidos na roda da portaria do Mosteiro durante o dia de feira das Festas da Rainha Santa (padroeira da cidade), estes pastéis foram depois comercializados na Confeitaria “Mijadinhas”, situada na Praça do Comércio, onde a receita original se manteve.
Mas a fama dos Pastéis de Santa Clara depressa transpôs a cidade de Coimbra. Estes doces em forma de meia-lua, recheados de ovos e amêndoas, chegaram ao Porto, onde eram tradicionalmente vendidos ao domingo à tarde, pelas ruas da cidade. Também atravessaram o Atlântico, e alcançaram o Brasil, levados pelo boca-a-boca dos emigrantes portugueses.
O Mosteiro de Santa Clara-a-Velha gozava de protecção régia e, por conseguinte, detinha privilégios económicos, permitindo às freiras clarissas viverem de forma desafogada e faustosa, o que não se coadunava com os preceitos da Ordem Franciscana à qual pertenciam.
Para trabalhos de doçaria, este mosteiro chegava a receber 8 arrobas de açúcar por ano. Devido ao consumo das iguarias que produziam, verificou-se em investigações recentes aos esqueletos das freiras, que estas padeciam frequentemente de problemas dentários tais como cáries e queda de dentes.
É sobretudo ao Mosteiro de Santa Clara que se atribui a origem da Lampreia de Ovos, um doce de Natal em forma de lampreia, composto por capas e fios de ovos, decorado com fruta cristalizada e glacê. Era normalmente comercializado em bonitas caixas com papel colorido e recortado. Hoje em dia, é um doce que nunca falta nas mesas de natal.
As "Barrigas de Freira" são um doce conventual cuja génese nos é difícil apurar, perante tantas versões provenientes dos conventos de todo o país. Nas diferentes receitas do doce, encontramos quase sempre a trilogia “amêndoas-ovos-açúcar” e, frequentemente, canela. A versão mais popularizada em Coimbra contém, além dos outros ingredientes, doce de gila, tornando o recheio rico e de textura aprazível.
O caso das Barrigas de Freira poderá refletir a quebra do sigilo sobre os receituários ao qual as freiras estariam obrigadas, assim que entravam nos conventos. Cada convento guardava a sua propriedade doceira como o seu maior tesouro, sendo que algumas receitas eram transmitidas oralmente, de forma a evitar a sua divulgação. Por este motivo, muito do património doceiro não terá chegado aos nossos dias já que muitas das receitas desapareceram com a morte das últimas freiras dos conventos.
Para a evolução do receituário conventual terão contribuído as mulheres que entravam no convento e muito interessavam ao desenvolvimento do mesmo – meninas nobres e de boas famílias, herdeiras solteiras, filhas segundas e viúvas ricas - não só pelo dote e pela proximidade ao rei, mas também pelas tradições gastronómicas e receitas que trouxeram consigo e que enriqueciam, em várias vertentes, o património do convento que as acolhia.
As Nevadas de Penacova, outrora conhecidas como “Palermos Cobertos”, vieram do Mosteiro do Lorvão para Penacova, pelas mãos de uma criada das freiras desta casa religiosa. Os atributos visuais do doce - cobertura rígida em açúcar e cor neutra - escondem a massa fofa e a surpresa do recheio de ovos cremoso no seu interior.
Sobre a data da fundação do Mosteiro do Lorvão não existe consenso: alguns investigadores situam-no no séc. XI, e outros consideram que já existiria no séc. VI, ou ainda antes. Começou por ser uma casa masculina, tendo mais tarde, no séc. XIII, passado a albergar a congregação feminina da Ordem de Cister. com a vinda de D. Teresa, que após a anulação do casamento com D. Afonso XI de Leão, veio viver para este mosteiro acompanhada pelas irmãs Sancha, Mafalda, Branca e Berengária, filhas de D. Sancho I.
Os Pastéis de Lorvão são uma das famosas criações das freiras do Mosteiro de Santa Maria do Lorvão, que segundo Nelson Correia Borges, contêm dois dos seus ingredientes preferidos: a amêndoa, provável herança árabe na doçaria portuguesa, e canela, a conhecida especiaria oriunda do Ceilão (hoje Sri Lanka).
Para além destes pastéis húmidos, tipo queijada, encontramos no receituário das monjas laurbanenses sobretudo doces de colher e “bolos ricos”, como beijinhos de freira, bolo podre de Lorvão, cavacas de Lorvão, e bolo das Infantas.
Os afamados doces do Lorvão conquistaram personalidades como o General Wellington e os seus homens que, aquando da sua estadia no mosteiro durante o período das Invasões Francesas, em 1810, muito apreciaram os “mimos” doceiros das freiras.
Os “Palitos Folhados” (inicialmente assim denominados), terão sido criados por uma freira carmelita, durante o século XVI, que decidiu oferecer este doce às crianças da aldeia, por altura do Natal. Este pastel de ingredientes “pobres”, pincelado com pena de galinha, e cuja folha é mais fina que uma folha de papel vegetal, viria a tornar-se no maior símbolo de Tentúgal, na medida em que produziu riqueza endógena e empoderou as mulheres da vila.
É apenas após o encerramento do Convento de N. Sr.ª do Carmo, no século XIX, que este doce conventual se celebrizou com a sua confeção a ser realizada pela única hospedaria situada no caminho entre Coimbra e a Figueira da Foz. Os Pastéis de Tentúgal ganharam fama também devido aos poetas, professores e estudantes da Universidade, que os levavam consigo após o término dos estudos. Um desses estudantes era António Nobre, que se deslocava mensalmente a Tentúgal para se abastecer de pastéis, esperando que, por entre as folhas finas e transparentes dos mesmos, viesse um bilhete da sua freira amada.
A Arrufada de Coimbra, originária do Convento de Sant'Ana, é um bolo seco (tipo pão doce), de longa conservação, duplamente fermentado, em forma redonda (antigamente, tomava também a forma de ferradura) e com uma coroa no cimo.
Este foi um doce que rapidamente se expandiu para além dos muros do Convento, e a continuação e difusão desta receita deveu-se às famosas “vendedeiras de Arrufadas”, que apregoavam o bolo nas ruas da Baixa e na Estação Velha.
Por altura da Páscoa, realizava-se um mercado no Largo de Sansão, onde as vendedeiras colocaram em linha os seus tabuleiros de Arrufadas, forrados de toalhas de linho de Almalaguês.
As Talhadas de Príncipe são originárias do Mosteiro de Santa Maria de Celas e surgem como forma de reaproveitar as arrufadas secas e duras. São cobertas com doce de ovos e calda de açúcar, ganhando assim uma textura húmida e muito saborosa.
Para além destes, existem muitos outros doces dignos de uma degustação, como a Nabada (doce conventual confecionado a partir do nabo, originário do Mosteiro de Semide, em Miranda do Corvo), ou as Queijadas de Pereira (do Convento das Ursulinas, em Montemor-o-Velho).
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